Ontem, depois da saída de mais uma visita e enquanto fumava o seu usual cigarro nocturno, o meu ‘vizinho misterioso’...ainda não me esforcei para decorar o nome dele, não por falta de interesse, mas pelo romantismo de o manter ilusivo... apanhou-me a observá-lo. Não sei se foi a primeira vez que se apercebeu da minha fascinação, mas desta vez foi assumido, cruzámos olhares.
Não me pareceu que se importasse, não fez nenhum movimento brusco, nem alterou a sua maneira de estar. Embora a troca de olhares tenha sido curta, foi tempo suficiente para me parecer transparecer um sorriso nos seus olhos escuros, a sua boca manteve-se na posição habitual, fechada sem sorriso mas também sem desagrado. Não tive coragem de continuar a olhá-lo, embora quisesse, senti-me envergonhada. Eu a observadora, senti-me...observada.
Hoje estou com receio de o espreitar, tento ser mais discreta. Ele chega a casa, sem nenhuma visita, coisa que eu nunca tinha visto. Antes de entrar pela porta do seu prédio, vira a cabeça e olha para a minha janela...não sei se me vê. Quero virar as costas e fugir para o refúgio da minha sala, mas não consigo, alguma coisa me mantém ali especada.
Já dentro de casa e muito mais cedo do que o costume, ele põe musica a tocar e vem encostar-se à sua janela habitual a fumar o seu cigarro. Desta vez, sem disfarce nem qualquer pudor, olha directamente para mim...
Wednesday, 20 May 2009
Monday, 18 May 2009
Parte III.
Luís, o varredor da rua, canta, alto e sem vergonha. Só canta cantigas estrangeiras, sabe as letras todas de cor e não se preocupa com o seu sotaque estrondoso. Não tem um timbre de voz especialmente bonito, mas também não falha uma nota, as melodias mantêm-se intactas quando ele as reproduz de forma tão desinibida.
É uma personagem engraçada, não sabe ler nem escrever...como se esperava...mas também não se preocupa com isso. Pergunto-lhe se não se sente alienado, como se todos percebessem algo e ele não. Se não é estranho entrar num restaurante e não saber decifrar o menu, responde-me que nunca teve esse problema, pois vai sempre à mesma tasca e pede sempre o prato do dia. Incrédula pergunto-lhe ‘...mas pede uma coisa sem saber o que é? E se não gostar do prato do dia?’ e ele responde ‘Oh menina, eu cá não sou dessas esquisitices’.
Depois da conversa com o Luís e enquanto passeio lentamente em direcção a casa, penso nisto. Não consigo perceber como viver sem ler, sem escrever, palavras escritas serem somente formas e símbolos que não sei interpretar. Quem seria eu se não pudesse ler um jornal, que personalidade seria a minha se nunca tivesse lido todos os livros que já li? Que identidade teria eu? A minha imaginação seria mais limitada ou mais forte, será que seria mais poderosa para compensar?...
Lembro-me de quando aprendi a ler musica. Durante muitos anos cantei, mas as pautas causavam–me pânico, vergonha ao não perceber o que elas diziam. Todos com quem me dava percebiam, menos eu. Sentia-me fora do jogo, como se fosse uma intrusa, nas margens, sem pertencer ao clube. Quando aprendi, senti que fazia parte de um novo mundo, exclusivo e que só alguns tinham o privilégio de conhecer, sentia-me superior, quase arrogante. Ouvia musica e sabia de pelo que é que era composta, reconhecia todos os ingredientes.
Mas, depois do encanto inicial de possuir tão grande sabedoria, dei por mim a perder o enorme prazer que a musica me dava. Como um cientista que disseca o coração humano, e já não consegue encará-lo como o ponto fulcral da alma mas somente como um órgão composto de veias e artérias, a sua essência reduzindo-se a ser meramente mecânica.
Questiono se a genuína felicidade que encontro na cara do Luís, reside no mesmo sitio que os ouvidos que ouvem a musica e são ignorantes à composição que a torna magica.
É uma personagem engraçada, não sabe ler nem escrever...como se esperava...mas também não se preocupa com isso. Pergunto-lhe se não se sente alienado, como se todos percebessem algo e ele não. Se não é estranho entrar num restaurante e não saber decifrar o menu, responde-me que nunca teve esse problema, pois vai sempre à mesma tasca e pede sempre o prato do dia. Incrédula pergunto-lhe ‘...mas pede uma coisa sem saber o que é? E se não gostar do prato do dia?’ e ele responde ‘Oh menina, eu cá não sou dessas esquisitices’.
Depois da conversa com o Luís e enquanto passeio lentamente em direcção a casa, penso nisto. Não consigo perceber como viver sem ler, sem escrever, palavras escritas serem somente formas e símbolos que não sei interpretar. Quem seria eu se não pudesse ler um jornal, que personalidade seria a minha se nunca tivesse lido todos os livros que já li? Que identidade teria eu? A minha imaginação seria mais limitada ou mais forte, será que seria mais poderosa para compensar?...
Lembro-me de quando aprendi a ler musica. Durante muitos anos cantei, mas as pautas causavam–me pânico, vergonha ao não perceber o que elas diziam. Todos com quem me dava percebiam, menos eu. Sentia-me fora do jogo, como se fosse uma intrusa, nas margens, sem pertencer ao clube. Quando aprendi, senti que fazia parte de um novo mundo, exclusivo e que só alguns tinham o privilégio de conhecer, sentia-me superior, quase arrogante. Ouvia musica e sabia de pelo que é que era composta, reconhecia todos os ingredientes.
Mas, depois do encanto inicial de possuir tão grande sabedoria, dei por mim a perder o enorme prazer que a musica me dava. Como um cientista que disseca o coração humano, e já não consegue encará-lo como o ponto fulcral da alma mas somente como um órgão composto de veias e artérias, a sua essência reduzindo-se a ser meramente mecânica.
Questiono se a genuína felicidade que encontro na cara do Luís, reside no mesmo sitio que os ouvidos que ouvem a musica e são ignorantes à composição que a torna magica.
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