Luís, o varredor da rua, canta, alto e sem vergonha. Só canta cantigas estrangeiras, sabe as letras todas de cor e não se preocupa com o seu sotaque estrondoso. Não tem um timbre de voz especialmente bonito, mas também não falha uma nota, as melodias mantêm-se intactas quando ele as reproduz de forma tão desinibida.
É uma personagem engraçada, não sabe ler nem escrever...como se esperava...mas também não se preocupa com isso. Pergunto-lhe se não se sente alienado, como se todos percebessem algo e ele não. Se não é estranho entrar num restaurante e não saber decifrar o menu, responde-me que nunca teve esse problema, pois vai sempre à mesma tasca e pede sempre o prato do dia. Incrédula pergunto-lhe ‘...mas pede uma coisa sem saber o que é? E se não gostar do prato do dia?’ e ele responde ‘Oh menina, eu cá não sou dessas esquisitices’.
Depois da conversa com o Luís e enquanto passeio lentamente em direcção a casa, penso nisto. Não consigo perceber como viver sem ler, sem escrever, palavras escritas serem somente formas e símbolos que não sei interpretar. Quem seria eu se não pudesse ler um jornal, que personalidade seria a minha se nunca tivesse lido todos os livros que já li? Que identidade teria eu? A minha imaginação seria mais limitada ou mais forte, será que seria mais poderosa para compensar?...
Lembro-me de quando aprendi a ler musica. Durante muitos anos cantei, mas as pautas causavam–me pânico, vergonha ao não perceber o que elas diziam. Todos com quem me dava percebiam, menos eu. Sentia-me fora do jogo, como se fosse uma intrusa, nas margens, sem pertencer ao clube. Quando aprendi, senti que fazia parte de um novo mundo, exclusivo e que só alguns tinham o privilégio de conhecer, sentia-me superior, quase arrogante. Ouvia musica e sabia de pelo que é que era composta, reconhecia todos os ingredientes.
Mas, depois do encanto inicial de possuir tão grande sabedoria, dei por mim a perder o enorme prazer que a musica me dava. Como um cientista que disseca o coração humano, e já não consegue encará-lo como o ponto fulcral da alma mas somente como um órgão composto de veias e artérias, a sua essência reduzindo-se a ser meramente mecânica.
Questiono se a genuína felicidade que encontro na cara do Luís, reside no mesmo sitio que os ouvidos que ouvem a musica e são ignorantes à composição que a torna magica.
Monday, 18 May 2009
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2 comments:
Como ée bom ver-te crescer amiga... tanto!
Adorei...
beijos
AC
Se o mundo fosse perfeito ou quase, acho que o Luis seria um desgraçado. A sua "miopia" não lhe permitiria alcançar conhecimento, fora do seu ambiente.
Ficaria restringido ao conhecimento empírico do seu meio ambiente e dia a dia, conforme está.
A que a capacidade técnica de adquirir conhecimento, ler, leva-nos a um mundo cão, "in-formado", deturpado, formatado e preconceituoso. Na realidade ficamos a saber mais coisas, mas que coisas?
O Luis só sabe o que quer, que é simplesmente aquilo que ele alcança. O saber leva-nos a lugares e pensamentos que... por vezes, quem nos dera ser Luis.
Mesmo assim, acho sempre que o melhor é sermos quem somos e dentro da permeabilidade de cada um, tentarmos ir um pouco mais longe, pensamento com o qual de certeza o dito Luis não se preocupa nem perde muito tempo.
Apesar de tudo, acho os Luises da vida são absolutamente necessários, quanto mais não seja para nos fazer pensar.
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