Deixo temporariamente a bela cidade para viajar.
Num dos portos em que se encosta o barco onde me tenho deitado e adormecido tão bem, abalada pela paz que me partilham as águas mediterrânicas, aterro os pés em terra firme para cear num restaurante de cozinha libanesa.
Eu e os meus companheiros de mesa criamos aqui um pequeno grupo muito internacional, Palestina, França, México, Espanha e Portugal. Ficamos numa mesa situada no canto de um pátio iluminado por velas e drapejado por voile transparente. A noite é quente, o céu negro e limpo, excepto o brilhar das muitas estrelas que me dão tanto prazer ao olhá-las. De vez em quando, passa uma leve brisa de ar morno que solta um bonito ruído das folhas de bambu que nos rodeiam.
O cheiro de especiarias vindas de terras longínquas enche o pátio. Este lugar parece-me muito exótico, sinto aquela maravilhosa sensação de um misto de ânsia e curiosidade que se tem quando rodeado de estranhos num sítio estranho.
Há algo muito erótico sobre o ar quente e pesado de uma noite de verão, o corpo desperta e os sentidos ficam mais atentos, mais primitivos, os olhos brilham e a pele fica subtilmente sensível a cada brisa que passa, a cada toque. Mesmo uma mão que se pousa noutra por nenhuma outra razão, a não ser estar a acompanhar uma conversa, transmite uma deliciosa sensualidade.
Sou sentada ao lado de um homem que até há poucos momentos me era desconhecido. Confesso que quando o vi, senti uma atracção imediata e percebi que ele também...tem olhos grandes e azuis, impossíveis de não admirar..Se fossemos como os animais, jamais estaríamos sentados tão civilizadamente à mesa a fazer conversa de ocasião.
O grupo é alegre, as várias culturas acrescentam interesse às histórias e discussões. Eu e o estranho interagimos com o resto do grupo animadamente, afim de tentar disfarçar o desejo que ambos sentimos um pelo outro e a vontade que temos de estar a sós. A entoação que usamos quando nos endereçamos cria um código secreto, uma intimidade entre estranhos, um certo joguinho que só nós sabemos que ali se desenrola.
Durante a ceia e sempre que pode, toca-me. Brinca com o meu isqueiro, acaricia o meu copo, como se estes objectos fizessem parte de mim.
A meio jantar, fala da sua noiva, com quem está junto há onze anos e tenciona casar em meados do próximo ano. Admite que ao longo dos anos tem sido infiel e justifica-o como sendo um investimento. Explica que se for infiel antes do casamento assim acabará com todas as suas curiosidades e depois de casado não procurará experiências com outras mulheres, estará saciado. Continua partilhando a sua filosofia com a mesa, maioritariamente masculina, que o tenta convencer que está incorrecto, eu fico calada à espera que termine o discurso. Diz que só escolhe mulheres ‘especiais’ para consumir a sua infidelidade e que precisa de o fazer por uma questão de assegurar a sua masculinidade.
Todos partilhamos uma sobremesa de laranjas cortadas às rodelas cobertas por mel, amendoas e flor de laranjeira, pergunto-lhe porque não come, pergunto-lhe se não gosta de laranjas. Diz-me que tem nojo de comer de um prato que não seja dele.
Quando terminamos a ceia, satisfeitos e já bem bebidos, dirigimo-nos ao bar do restaurante. Enquanto os outros discutem qual deve ser o nosso próximo passo para continuar a festejar esta noite, ele agarra-me o pulso e guia-me para que fiquemos separados dos outros por uma pequena distância. Posiciona-se muito próximo de mim, sinto o tecido da sua roupa a tocar-me e continua o seu discurso.
Durante toda a discussão e até ao momento mantive-me silenciosa, assim continuo e oiço-o. Finalmente pergunto-lhe porque se tenta justificar a mim. “Quero que me percebas”, diz ele, “Quero que entendas as minhas razões e que não me julgues”. Mais uma vez apenas sorrio e não lhe concedo qualquer opinião ou resposta. Vejo nos olhos dele que pensa que estou ganha e aguardo pacientemente o momento em que me desafiará a partir com ele.
Depois de mais alguns momentos, como se esperava, convida-me a sair dali com ele. Sorrio.
Mais tarde, retiro os pés da terra, deito-me, fecho os olhos. Sinto o seu cheiro, o meu corpo transpira e move-se ao acompanhar o seu ritmo. Sinto um enorme prazer, plena satisfação ao ouvir o seu sussurrar. Este momento é meu, não o partilho com mais ninguém, não me sinto só quando estou com o mar.
Thursday, 10 September 2009
Friday, 17 July 2009
Parte V.
Desde aquela primeira noite em que troquei olhares com o meu Vizinho Misterioso, houve um grande progresso, agora é assumido. Olhamo-nos sem disfarce. Por vezes quase que sorrimos um para o outro, mas é uma coisa subtil, não há cá um piscar de olho, nem o abanar de uma mão para dizer olá ou assinalar o adeus.
Tenho começado a sentir alguma ansiedade ao andar na minha rua, sinto nervos quando penso na grande probabilidade de o encontrar, no perigo de estar em proximidade suficiente para quebrar o silêncio e assim acabar com este nosso jogo nocturno tão delicioso...
Hoje, ao terminar um almoço no Chiado, passeio-me sem pressa, sem aquela determinação que adoptamos no passo quando já estamos a chegar perto de casa. Hoje ando lentamente, com rumo mas com o ritmo de quem não o tem. Adoro estes dias, em que me perco nas ruas que já conheço tão bem. Fico encantada a olhar para o azul do céu, ou a luz que só Lisboa tem. Não é raro a beleza encher a nossa cidade, pelo contrário somos abençoados com luminosidade e brilho quase diariamente...
Lembro-me de quando vivia em Londres, chovia meses a fio. Estava constantemente frio, mas a minha maior desgraça era a escuridão. Temporadas intermináveis de dias que pareciam noites, nessas alturas tinha dado tudo por um raio de sol lisboeta.
Nem sempre, mas muitas vezes, enquanto passeio, sinto um aperto no coração, ou borboletas no estômago e penso “amo esta cidade”, a sensação é igual a como se tivesse a trocar olhares com um amante.
...Apercebo-me que já cheguei ao início da minha rua sem dar conta. Perco a sensação de fantasia que me acompanhava desde o Chiado e fico nervosa. Digo o habitual olá ao Sr. Xico, que como sempre está sentado à porta da sua mercearia a comer tremoços e sorrio ao ouvir as magníficas gargalhadas da Dona Marilu que se escapam lá de dentro.
Começo a andar mais rápido, encolho os ombros e baixo a cabeça, como se isso fosse suficiente para me esconder. Chego à porta de minha casa e tenho dificuldades em acertar com a chave na fechadura, tenho as mãos a tremer.
Já dentro do prédio, com a porta a criar barreira entre eu e a rua, suspiro. Solto uma gargalhada nervosa e dirijo-me à minha caixa de correio. Tenho diariamente a esperança de encontrar um envelope com o meu nome escrito à mão, coisa que hoje em dia é tão rara. Encontro dois envelopes, um do banco que rasgo sem abrir, e uma conta da companhia das águas. Tenho diariamente a esperança de aqui encontrar uma carta de amor.
Tenho começado a sentir alguma ansiedade ao andar na minha rua, sinto nervos quando penso na grande probabilidade de o encontrar, no perigo de estar em proximidade suficiente para quebrar o silêncio e assim acabar com este nosso jogo nocturno tão delicioso...
Hoje, ao terminar um almoço no Chiado, passeio-me sem pressa, sem aquela determinação que adoptamos no passo quando já estamos a chegar perto de casa. Hoje ando lentamente, com rumo mas com o ritmo de quem não o tem. Adoro estes dias, em que me perco nas ruas que já conheço tão bem. Fico encantada a olhar para o azul do céu, ou a luz que só Lisboa tem. Não é raro a beleza encher a nossa cidade, pelo contrário somos abençoados com luminosidade e brilho quase diariamente...
Lembro-me de quando vivia em Londres, chovia meses a fio. Estava constantemente frio, mas a minha maior desgraça era a escuridão. Temporadas intermináveis de dias que pareciam noites, nessas alturas tinha dado tudo por um raio de sol lisboeta.
Nem sempre, mas muitas vezes, enquanto passeio, sinto um aperto no coração, ou borboletas no estômago e penso “amo esta cidade”, a sensação é igual a como se tivesse a trocar olhares com um amante.
...Apercebo-me que já cheguei ao início da minha rua sem dar conta. Perco a sensação de fantasia que me acompanhava desde o Chiado e fico nervosa. Digo o habitual olá ao Sr. Xico, que como sempre está sentado à porta da sua mercearia a comer tremoços e sorrio ao ouvir as magníficas gargalhadas da Dona Marilu que se escapam lá de dentro.
Começo a andar mais rápido, encolho os ombros e baixo a cabeça, como se isso fosse suficiente para me esconder. Chego à porta de minha casa e tenho dificuldades em acertar com a chave na fechadura, tenho as mãos a tremer.
Já dentro do prédio, com a porta a criar barreira entre eu e a rua, suspiro. Solto uma gargalhada nervosa e dirijo-me à minha caixa de correio. Tenho diariamente a esperança de encontrar um envelope com o meu nome escrito à mão, coisa que hoje em dia é tão rara. Encontro dois envelopes, um do banco que rasgo sem abrir, e uma conta da companhia das águas. Tenho diariamente a esperança de aqui encontrar uma carta de amor.
Wednesday, 20 May 2009
Parte IV.
Ontem, depois da saída de mais uma visita e enquanto fumava o seu usual cigarro nocturno, o meu ‘vizinho misterioso’...ainda não me esforcei para decorar o nome dele, não por falta de interesse, mas pelo romantismo de o manter ilusivo... apanhou-me a observá-lo. Não sei se foi a primeira vez que se apercebeu da minha fascinação, mas desta vez foi assumido, cruzámos olhares.
Não me pareceu que se importasse, não fez nenhum movimento brusco, nem alterou a sua maneira de estar. Embora a troca de olhares tenha sido curta, foi tempo suficiente para me parecer transparecer um sorriso nos seus olhos escuros, a sua boca manteve-se na posição habitual, fechada sem sorriso mas também sem desagrado. Não tive coragem de continuar a olhá-lo, embora quisesse, senti-me envergonhada. Eu a observadora, senti-me...observada.
Hoje estou com receio de o espreitar, tento ser mais discreta. Ele chega a casa, sem nenhuma visita, coisa que eu nunca tinha visto. Antes de entrar pela porta do seu prédio, vira a cabeça e olha para a minha janela...não sei se me vê. Quero virar as costas e fugir para o refúgio da minha sala, mas não consigo, alguma coisa me mantém ali especada.
Já dentro de casa e muito mais cedo do que o costume, ele põe musica a tocar e vem encostar-se à sua janela habitual a fumar o seu cigarro. Desta vez, sem disfarce nem qualquer pudor, olha directamente para mim...
Não me pareceu que se importasse, não fez nenhum movimento brusco, nem alterou a sua maneira de estar. Embora a troca de olhares tenha sido curta, foi tempo suficiente para me parecer transparecer um sorriso nos seus olhos escuros, a sua boca manteve-se na posição habitual, fechada sem sorriso mas também sem desagrado. Não tive coragem de continuar a olhá-lo, embora quisesse, senti-me envergonhada. Eu a observadora, senti-me...observada.
Hoje estou com receio de o espreitar, tento ser mais discreta. Ele chega a casa, sem nenhuma visita, coisa que eu nunca tinha visto. Antes de entrar pela porta do seu prédio, vira a cabeça e olha para a minha janela...não sei se me vê. Quero virar as costas e fugir para o refúgio da minha sala, mas não consigo, alguma coisa me mantém ali especada.
Já dentro de casa e muito mais cedo do que o costume, ele põe musica a tocar e vem encostar-se à sua janela habitual a fumar o seu cigarro. Desta vez, sem disfarce nem qualquer pudor, olha directamente para mim...
Monday, 18 May 2009
Parte III.
Luís, o varredor da rua, canta, alto e sem vergonha. Só canta cantigas estrangeiras, sabe as letras todas de cor e não se preocupa com o seu sotaque estrondoso. Não tem um timbre de voz especialmente bonito, mas também não falha uma nota, as melodias mantêm-se intactas quando ele as reproduz de forma tão desinibida.
É uma personagem engraçada, não sabe ler nem escrever...como se esperava...mas também não se preocupa com isso. Pergunto-lhe se não se sente alienado, como se todos percebessem algo e ele não. Se não é estranho entrar num restaurante e não saber decifrar o menu, responde-me que nunca teve esse problema, pois vai sempre à mesma tasca e pede sempre o prato do dia. Incrédula pergunto-lhe ‘...mas pede uma coisa sem saber o que é? E se não gostar do prato do dia?’ e ele responde ‘Oh menina, eu cá não sou dessas esquisitices’.
Depois da conversa com o Luís e enquanto passeio lentamente em direcção a casa, penso nisto. Não consigo perceber como viver sem ler, sem escrever, palavras escritas serem somente formas e símbolos que não sei interpretar. Quem seria eu se não pudesse ler um jornal, que personalidade seria a minha se nunca tivesse lido todos os livros que já li? Que identidade teria eu? A minha imaginação seria mais limitada ou mais forte, será que seria mais poderosa para compensar?...
Lembro-me de quando aprendi a ler musica. Durante muitos anos cantei, mas as pautas causavam–me pânico, vergonha ao não perceber o que elas diziam. Todos com quem me dava percebiam, menos eu. Sentia-me fora do jogo, como se fosse uma intrusa, nas margens, sem pertencer ao clube. Quando aprendi, senti que fazia parte de um novo mundo, exclusivo e que só alguns tinham o privilégio de conhecer, sentia-me superior, quase arrogante. Ouvia musica e sabia de pelo que é que era composta, reconhecia todos os ingredientes.
Mas, depois do encanto inicial de possuir tão grande sabedoria, dei por mim a perder o enorme prazer que a musica me dava. Como um cientista que disseca o coração humano, e já não consegue encará-lo como o ponto fulcral da alma mas somente como um órgão composto de veias e artérias, a sua essência reduzindo-se a ser meramente mecânica.
Questiono se a genuína felicidade que encontro na cara do Luís, reside no mesmo sitio que os ouvidos que ouvem a musica e são ignorantes à composição que a torna magica.
É uma personagem engraçada, não sabe ler nem escrever...como se esperava...mas também não se preocupa com isso. Pergunto-lhe se não se sente alienado, como se todos percebessem algo e ele não. Se não é estranho entrar num restaurante e não saber decifrar o menu, responde-me que nunca teve esse problema, pois vai sempre à mesma tasca e pede sempre o prato do dia. Incrédula pergunto-lhe ‘...mas pede uma coisa sem saber o que é? E se não gostar do prato do dia?’ e ele responde ‘Oh menina, eu cá não sou dessas esquisitices’.
Depois da conversa com o Luís e enquanto passeio lentamente em direcção a casa, penso nisto. Não consigo perceber como viver sem ler, sem escrever, palavras escritas serem somente formas e símbolos que não sei interpretar. Quem seria eu se não pudesse ler um jornal, que personalidade seria a minha se nunca tivesse lido todos os livros que já li? Que identidade teria eu? A minha imaginação seria mais limitada ou mais forte, será que seria mais poderosa para compensar?...
Lembro-me de quando aprendi a ler musica. Durante muitos anos cantei, mas as pautas causavam–me pânico, vergonha ao não perceber o que elas diziam. Todos com quem me dava percebiam, menos eu. Sentia-me fora do jogo, como se fosse uma intrusa, nas margens, sem pertencer ao clube. Quando aprendi, senti que fazia parte de um novo mundo, exclusivo e que só alguns tinham o privilégio de conhecer, sentia-me superior, quase arrogante. Ouvia musica e sabia de pelo que é que era composta, reconhecia todos os ingredientes.
Mas, depois do encanto inicial de possuir tão grande sabedoria, dei por mim a perder o enorme prazer que a musica me dava. Como um cientista que disseca o coração humano, e já não consegue encará-lo como o ponto fulcral da alma mas somente como um órgão composto de veias e artérias, a sua essência reduzindo-se a ser meramente mecânica.
Questiono se a genuína felicidade que encontro na cara do Luís, reside no mesmo sitio que os ouvidos que ouvem a musica e são ignorantes à composição que a torna magica.
Tuesday, 14 April 2009
Parte II.
Através de outra janela do mesmo prédio, consigo espreitar a sala do Sr. Xico e da Sra. Maria de Lurdes ou Dona Marilu como a chamam na Mercearia, da qual são proprietários.
O Sr. Xico é mau como as cobras, resmungão e trombudo, como se a vida lhe tivesse a dever uns quantos trocos. Só ele trata a Dona Marilu, pelo seu verdadeiro nome. Passa todo o dia sentado à porta da mercearia, a berrar-lhe ordens enquanto come tremoços e vigia a vizinhança. Nunca ouvi este homem a falar com a sua esposa sem ser a gritar, e nunca vi um mínimo carinho trocado entre o casal publicamente, que, pelo que me contou a Dona Marilu, são casados já lá vão trinta e dois anos.
A Dona Marilu, é sorridente. Solta gargalhadas profundas e maravilhosamente sonoras com tanta regularidade e espontaneidade que nunca se percebe bem o que lhe desperta tal expressão. Ao final de cada dia, o Sr. Xico deve-lhe contar tudo o que observou na rua, pois ela é a própria concierge do bairro, sabe os nomes e as vidas de tudo e de todos. Já comentou comigo que o seu marido fica furibundo com as muitas visitas e musica alta do rapaz do lado (o meu vizinho misterioso) e que inúmeras vezes pegou no telefone para chamar a policia, mas ela não o deixou.
Só vejo metade da sala deles, o ângulo não me permite mais. O que consigo ver é o que se espera; Rendas, fotografias emolduradas, bibelôs e mobília castanha e escura, velha e não antiga. Têm ambos hábitos fixos, trabalham todos os dias, menos ao domingo quando fecham a mercearia e vão à missa, e passam todas as noites na sala a ver a televisão, é claramente um ritual. Ele não fuma, excepto, um cigarro, sempre a seguir ao jantar e sempre à mesma hora. A seguir à primeira inalação que é gozada de olhos fechados e muito lentamente, Sr. Xico transforma-se! Sorri... A seguir ao que me parece uma eternidade, vem o momento que me dá mais gozo espiar...apaga o seu cigarro fumado até ao filtro, arruma o maço na gaveta e levanta-se da poltrona. Atravessa a pequena distância até ao sofá, para se sentar ao lado da sua esposa, beija-lhe a bochecha cuidadosamente e dá-lhe a mão.
O Sr. Xico é mau como as cobras, resmungão e trombudo, como se a vida lhe tivesse a dever uns quantos trocos. Só ele trata a Dona Marilu, pelo seu verdadeiro nome. Passa todo o dia sentado à porta da mercearia, a berrar-lhe ordens enquanto come tremoços e vigia a vizinhança. Nunca ouvi este homem a falar com a sua esposa sem ser a gritar, e nunca vi um mínimo carinho trocado entre o casal publicamente, que, pelo que me contou a Dona Marilu, são casados já lá vão trinta e dois anos.
A Dona Marilu, é sorridente. Solta gargalhadas profundas e maravilhosamente sonoras com tanta regularidade e espontaneidade que nunca se percebe bem o que lhe desperta tal expressão. Ao final de cada dia, o Sr. Xico deve-lhe contar tudo o que observou na rua, pois ela é a própria concierge do bairro, sabe os nomes e as vidas de tudo e de todos. Já comentou comigo que o seu marido fica furibundo com as muitas visitas e musica alta do rapaz do lado (o meu vizinho misterioso) e que inúmeras vezes pegou no telefone para chamar a policia, mas ela não o deixou.
Só vejo metade da sala deles, o ângulo não me permite mais. O que consigo ver é o que se espera; Rendas, fotografias emolduradas, bibelôs e mobília castanha e escura, velha e não antiga. Têm ambos hábitos fixos, trabalham todos os dias, menos ao domingo quando fecham a mercearia e vão à missa, e passam todas as noites na sala a ver a televisão, é claramente um ritual. Ele não fuma, excepto, um cigarro, sempre a seguir ao jantar e sempre à mesma hora. A seguir à primeira inalação que é gozada de olhos fechados e muito lentamente, Sr. Xico transforma-se! Sorri... A seguir ao que me parece uma eternidade, vem o momento que me dá mais gozo espiar...apaga o seu cigarro fumado até ao filtro, arruma o maço na gaveta e levanta-se da poltrona. Atravessa a pequena distância até ao sofá, para se sentar ao lado da sua esposa, beija-lhe a bochecha cuidadosamente e dá-lhe a mão.
Thursday, 2 April 2009
Parte I.
No coração da bela Lisboa, numa rua típica e nada extraordinária, vivem lisboetas, como é de se esperar.
Igual a muitas outras ruas da nossa capital, esta é pequena e habitada por prédios compostos de fachadas de várias cores e épocas. A calçada do passeio é desigual e já lhe faltam umas quantas pedras, a mercearia que forma a esquina irradia cheiro familiar, um misto de couves e lixívia. Na outra ponta, chinelos, flores falsas e brinquedos de plástico decoram a montra da loja dos chineses, mais uma...poderia dizer o que acho disso mas fica para outra altura.
As personagens desta rua representam o que é a população da nossa cidade, velhos, novos, amarelos, brancos, democratas, monarcas, enfim o mais significante é que se vive ali uma paz.
Do quarto andar, sem elevador, a janela do meu quarto esta ao nível da janela do vizinho que habita o mesmo piso do outro lado da rua, a estrada é estreita e assim a proximidade garante uma boa visibilidade da vida caseira uns dos outros. Não sou uma pessoa naturalmente cusca, se observo é pelo um fascínio quase sociológico, de ver o humano no seu habitat, como ver filmagens dos leões da selva na televisão.
Este vizinho, não sei o nome dele, é novo, se ainda não os tem, deve estar perto dos trinta. Fisicamente é imperfeito, o que o torna aos meus olhos, belo. Tem daqueles narizes que pode ser considerado inestéticos, não é especialmente grande mas é torto. Os seus olhos são escuros, quase negros, o que os torna misteriosos, as emoções que possam sentir quase imperceptíveis ao observador. É magro mas tem as costas largas e a sua considerável altura faz com que ande meio inclinado.
À noite encosta-se à janela e fuma, às vezes dois ou três cigarros de seguida. Não sei para onde olha, mas também não me parece que esteja a ver coisa que esteja fora da sua imaginação. São poucas as noites em que chega a casa sozinho, mas acába-las sempre assim, a fumar o seu cigarro. Embora entretenha estas muitas visitas, ao final da noite parece-me só.
Igual a muitas outras ruas da nossa capital, esta é pequena e habitada por prédios compostos de fachadas de várias cores e épocas. A calçada do passeio é desigual e já lhe faltam umas quantas pedras, a mercearia que forma a esquina irradia cheiro familiar, um misto de couves e lixívia. Na outra ponta, chinelos, flores falsas e brinquedos de plástico decoram a montra da loja dos chineses, mais uma...poderia dizer o que acho disso mas fica para outra altura.
As personagens desta rua representam o que é a população da nossa cidade, velhos, novos, amarelos, brancos, democratas, monarcas, enfim o mais significante é que se vive ali uma paz.
Do quarto andar, sem elevador, a janela do meu quarto esta ao nível da janela do vizinho que habita o mesmo piso do outro lado da rua, a estrada é estreita e assim a proximidade garante uma boa visibilidade da vida caseira uns dos outros. Não sou uma pessoa naturalmente cusca, se observo é pelo um fascínio quase sociológico, de ver o humano no seu habitat, como ver filmagens dos leões da selva na televisão.
Este vizinho, não sei o nome dele, é novo, se ainda não os tem, deve estar perto dos trinta. Fisicamente é imperfeito, o que o torna aos meus olhos, belo. Tem daqueles narizes que pode ser considerado inestéticos, não é especialmente grande mas é torto. Os seus olhos são escuros, quase negros, o que os torna misteriosos, as emoções que possam sentir quase imperceptíveis ao observador. É magro mas tem as costas largas e a sua considerável altura faz com que ande meio inclinado.
À noite encosta-se à janela e fuma, às vezes dois ou três cigarros de seguida. Não sei para onde olha, mas também não me parece que esteja a ver coisa que esteja fora da sua imaginação. São poucas as noites em que chega a casa sozinho, mas acába-las sempre assim, a fumar o seu cigarro. Embora entretenha estas muitas visitas, ao final da noite parece-me só.
Thursday, 26 March 2009
Inconsequente
Quis amar mas não me deixaram, cortaram-me a frase a meio.
Tentei, mas não consegui que a minha vontade fosse mais livre que a ditadura do meu medo.
Queria cantar alto, mas calei-me, sabia que alguém cantaria melhor.
Tentei acompanhar o ritmo dos teus passos, mas eras mais rápido que eu, o caminho que me deixaras era traiçoeiro...tropecei.
O pedaço de papel, com uma nota rabiscada que te deixei...eu, concerteza, teria guardado para ler e reler... encontrei-o no lixo. Com um simples gesto deitaste-o fora, mas não sem o rasgar primeiro. Quando o vi, descartado junto do resto da varredura, neguei aos meus olhos alertarem-me à verdade. Desculpei o teu desprezo, convencendo-me que estava a ser mesquinha.
Hoje que estou feliz; Depois de meses de silêncio, falas-me, como se tivesses sentido saudade da minha dor.
...Corto-te a frase a meio.
Tentei, mas não consegui que a minha vontade fosse mais livre que a ditadura do meu medo.
Queria cantar alto, mas calei-me, sabia que alguém cantaria melhor.
Tentei acompanhar o ritmo dos teus passos, mas eras mais rápido que eu, o caminho que me deixaras era traiçoeiro...tropecei.
O pedaço de papel, com uma nota rabiscada que te deixei...eu, concerteza, teria guardado para ler e reler... encontrei-o no lixo. Com um simples gesto deitaste-o fora, mas não sem o rasgar primeiro. Quando o vi, descartado junto do resto da varredura, neguei aos meus olhos alertarem-me à verdade. Desculpei o teu desprezo, convencendo-me que estava a ser mesquinha.
Hoje que estou feliz; Depois de meses de silêncio, falas-me, como se tivesses sentido saudade da minha dor.
...Corto-te a frase a meio.
Tuesday, 24 March 2009
Just like my coffee...No sugar, no milk, no bullshit.
Toma-me como eu sou, não me adiciones açúcar pois ao segundo ou terceiro provar sou doce. A amargura não faz parte da minha composição.
Não me adiciones leite pois não preciso de engordar, o meu corpo é enriquecido pela minha alma.
Não me investigues à procura de encontrar outra cor disfarçada no preto, pois sou pura.
Não me disfarces e não me acrescentes, toma-me com eu sou.
Não me adiciones leite pois não preciso de engordar, o meu corpo é enriquecido pela minha alma.
Não me investigues à procura de encontrar outra cor disfarçada no preto, pois sou pura.
Não me disfarces e não me acrescentes, toma-me com eu sou.
Friday, 20 March 2009
A minha Amiga.. que perdeu o coração
Tenho uma amiga que perdeu o coração no fundo do mar.
Perdeu o seu Pai para o mar e assim, naquele momento, ficou sem coração. A força fulcral pela qual se regia, aquela tão pujante que fazia com que o seu sangue lhe corresse pelas veias e lhe desse a raça que a torna tão particular. Se todos nos regemos pelas bases que nos deram, a Teresa é o epítome disso.
Ontem foi dia do Pai, o primeiro que a Teresa passou sem. Convidou-me para jantar. Senti-me privilegiada, por ter sido a mim quem escolheu para partilhar esta primeira vez; Perguntei-lhe porque me tinha escolhido, não podia sentir empatia..nunca perdi um pai, nunca tive um para perder. Ela responde que era precisamente essa a sua razão. Esta nobreza e falta de necessidade de reviver a dor de outra ter-me-ia surpreendido, mas dela não.
Na sala, a fotografia deste grande senhor está pendurada na parede, alta, bem mais alta que nós, o seu poder ainda se sente. À mesa, enquanto conversamos, sinto os olhos dela a irem ao seu encontro, como se ainda procurasse a sua aprovação ao fechar de cada frase. Quero que ela veja aquilo que eu vejo, quero-lhe descrever, mas não encontro as palavras. Quero-lhe dizer que na sua enorme perda, encontro uma vitória, a menina errática e bruta que se achou incompleta, tornou-se numa mulher inteira, ainda mais humilde e ainda mais bonita.
A minha amiga perdeu o coração no fundo do mar, encontrou-o no lodo do rio. O seu coração voltou ao lugar onde pertence e onde encaixa tão bem, maior e mais forte.
Perdeu o seu Pai para o mar e assim, naquele momento, ficou sem coração. A força fulcral pela qual se regia, aquela tão pujante que fazia com que o seu sangue lhe corresse pelas veias e lhe desse a raça que a torna tão particular. Se todos nos regemos pelas bases que nos deram, a Teresa é o epítome disso.
Ontem foi dia do Pai, o primeiro que a Teresa passou sem. Convidou-me para jantar. Senti-me privilegiada, por ter sido a mim quem escolheu para partilhar esta primeira vez; Perguntei-lhe porque me tinha escolhido, não podia sentir empatia..nunca perdi um pai, nunca tive um para perder. Ela responde que era precisamente essa a sua razão. Esta nobreza e falta de necessidade de reviver a dor de outra ter-me-ia surpreendido, mas dela não.
Na sala, a fotografia deste grande senhor está pendurada na parede, alta, bem mais alta que nós, o seu poder ainda se sente. À mesa, enquanto conversamos, sinto os olhos dela a irem ao seu encontro, como se ainda procurasse a sua aprovação ao fechar de cada frase. Quero que ela veja aquilo que eu vejo, quero-lhe descrever, mas não encontro as palavras. Quero-lhe dizer que na sua enorme perda, encontro uma vitória, a menina errática e bruta que se achou incompleta, tornou-se numa mulher inteira, ainda mais humilde e ainda mais bonita.
A minha amiga perdeu o coração no fundo do mar, encontrou-o no lodo do rio. O seu coração voltou ao lugar onde pertence e onde encaixa tão bem, maior e mais forte.
Thursday, 19 March 2009
Coisas Que Prefiro Não Saber
Tenho uma fascinação pelo amolador. Aquele senhor que vai de porta em porta e afia facas e afins. A esta fascinação acresce fantasia, provavelmente completamente irreal e infantil, pois desde muito pequena que me lembro da sensação que me transmitia o sabido assobio desta personagem. Na minha fantasia, acreditava-o portador do arco-íris.
Enquanto brincava no jardim, ouvia este maravilhoso som, cada vez mais audível com a aproximação; mas por mais longe que ele estivesse, talvez 3 ou 4 ruas abaixo, esta melodia tão própria e mística era, e continua a ser, inconfundível.
Nunca o vi, o que agradeço, pois não tenho duvida que a minha fantasia é bem mais romântica e colorida do que a realidade... espero nunca o ver. Tenho medo, que com o passar do tempo, deixe de o ouvir. Tenho medo que este assobio, tão bonito, venha juntar-se às memórias daqueles que já não me batem à porta, como o leiteiro, o padeiro ou a robusta peixeira que nos vinha feirar os seus tesouros a todas as quartas-feiras. Isto causa-me transtorno.
Há coisas que nunca quero conhecer. Há coisas que prefiro manter à distância de um sonho, de uma amada fantasia. Não quero perder o deslumbramento, o encanto que me move aquele assobio melodioso.
Enquanto brincava no jardim, ouvia este maravilhoso som, cada vez mais audível com a aproximação; mas por mais longe que ele estivesse, talvez 3 ou 4 ruas abaixo, esta melodia tão própria e mística era, e continua a ser, inconfundível.
Nunca o vi, o que agradeço, pois não tenho duvida que a minha fantasia é bem mais romântica e colorida do que a realidade... espero nunca o ver. Tenho medo, que com o passar do tempo, deixe de o ouvir. Tenho medo que este assobio, tão bonito, venha juntar-se às memórias daqueles que já não me batem à porta, como o leiteiro, o padeiro ou a robusta peixeira que nos vinha feirar os seus tesouros a todas as quartas-feiras. Isto causa-me transtorno.
Há coisas que nunca quero conhecer. Há coisas que prefiro manter à distância de um sonho, de uma amada fantasia. Não quero perder o deslumbramento, o encanto que me move aquele assobio melodioso.
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